NEGROS GENIAIS
Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra do Brasil (1913-1981)
Enedina
Alves Marques foi a primeira mulher e primeira negra a graduar-se em
Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, em 1945. A
engenheira participou da construção da Usina de Parigot de Souza e
trabalhou na Secretaria Estadual de Educação, entre outros locais.
Em agosto de 1981, o
jornal Diário Popular tinha a matéria de capa que pedira aos infernos.
Uma senhora fora encontrada morta em seu apartamento, na Rua Ermelino de
Leão, Centro de Curitiba. O porteiro sentira falta da moradora, chamou a
polícia e a imprensa veio atrás. A foto da “falecida” saiu sem pudores,
na cama, em camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da
imprensa policial. Houve quem não gostasse, com punhos e coração.
A vítima se chamava
Enedina Alves Marques, tinha 68 anos e fora a primeira engenheira negra
do Brasil. Morreu de infarte. Indignação. Seus companheiros de ofício
fizeram uma grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou.
Afinal, as vitórias de uma mulher negra e pobre que figurou entre os
seletos bacharéis de Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria
constar nos anais da República, e não na manchete sanguinolenta de um
tabloide.
Deu resultado.
Enedina virou placa de rua no Cajuru. Ganhou inscrição de bronze no
Memorial à Mulher Pioneira, criado pelas soroptimistas – organização
internacional voltada aos direitos humanos, da qual participou. Mereceu
biografia assinada por Ildefonso Puppi. Seu túmulo, no Municipal, é
mantido com respeito pelo Instituto de Engenheiros do Paraná. Tempos
depois, batizou o Instituto Mulheres Negras, de Maringá.
Aos poucos,
descansou em paz. Paz até demais. O centenário de nascimento de Enedina,
em janeiro deste ano, passou em branco. Poderia ter sido celebrado pari
passu com o de sua contemporânea, a poeta Helena Kolody, com quem,
suspeita-se, teria estudado. Sim, antes de engenheira foi normalista e
civilizou os sertões de Rio Negro e Cerro Azul, saindo das lides de
doméstica e de “mãe preta” para a de titular de uma sala de aula.
Eu mesmo, confesso,
nunca tinha ouvido falar dela até semana passada, quando meu vizinho,
Darcy Rosa, estufou o peito para contar que tinha trabalhado com Enedina
na Secretaria de Viação e Obras. Publicamos a declaração. Foi o que
bastou: súbito vieram mensagens revelando a catacumba onde se reúnem os
cultores dessa mulher.
O cineasta Paulo
Munhoz prepara um documentário sobre ela, em parceria com o historiador
Sandro Luis Fernandes. A casa de Sandro, no São Braz, virou um pequeno
memorial de todo e qualquer documento que traga informações sobre a
engenheira. São raros, dispersos e imprecisos. Bem o sabe o estudante
baiano Jorge Santana. Há dois anos, ele pinça toda e qualquer pista
sobre Enedina para uma monografia no curso de História da UFPR. A
pesquisa promete. Há fortes indícios de que Enedina sofreu perseguição
racial nos bastidores da universidade.
Formou-se aos 31
anos, sem refresco, depois de uma saga nas madurezas. Vingou-se ao se
aposentar, na década de 1960, como procuradora, respeitada por sua
contribuição à autonomia elétrica do Paraná. Conheceu o mundo. Morava
num apartamento de 500 metros quadrados. Impôs-se entre os ricos por sua
cultura, 12 perucas e casacos de pele. Desconhece-se que tenha feito
odes feministas ou em prol da igualdade. Ou que fizesse o tipo boazinha
para ser aceita. Pelo contrário. Talvez Enedina tenha sido mais admirada
que amada. É o que a torna ainda mais intrigante.
As pesquisas de
Sandro e de Jorge – ambos negros – já tiraram Enedina do campo dos
panegíricos, que se limitam a pintá-la como alguém que venceu pelo
próprio esforço. É um discurso bem conveniente, como se sabe. Tudo
indica que não se trata de uma biografia isolada, ainda que pareça.
A mulher baixinha,
magérrima e durona sabia se impor entre os homens – com os quais gostava
de beber cerveja. Enfrentava a lida nas barragens como um deles, armada
se preciso fosse. É uma heroína perfeita para um longa-metragem. Nasceu
de uma gente humilde do Portão. Era única menina numa casa de dez
filhos. A mãe, Virgília, a dona Duca, ganhava uns trocos como lavadeira.
O pai, Paulo, está na categoria “saiu para comprar cigarros”.
Mas não é tudo.
Enedina teria feito parte de uma rede de resistência da comunidade negra
paranaense, pré-Black Power, da qual pouco se ouve falar. As vitórias
que teve desmentem a propalada passividade desse grupo diante das
migalhas que lhe foram reservadas. O destino dela teria mudado ao cruzar
com a família de Domingos Nascimento, negro de posses da Água Verde, e
com os Heibel e os Caron, brancos progressistas que acabaram por se
tornar os seus.
Nesses redutos não
teria encontrado apenas um horário para estudar ao lado do fogão de
lenha. Ali, suspeita-se, passou de Dindinha, seu apelido, a Enedina, a
primeira engenheira, mas também uma das primeiras negras de fato
alforriadas de que se tem notícia. Eis o ponto.
JOSÉ CARLOS FERNANDES
jcfernandes@gazetadopovo.com.br
Gazeta do Povo - Curitiba-PR
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